Robert
Darnton é um historiador estadunidense seguidor da tendência de análise da
História conhecida como História das
Mentalidades, surgida na Escola dos
Annales, esse movimento propôs uma historiografia de uma “História Cultural”, defendia que o
historiador deve além de mostrar o que pensavam os indivíduos, precisava, além
disso, desvendar como pensavam os indivíduos dessa sociedade, debruçando-se nos
estudos dos hábitos e fatos do cotidiano. Darnton é especialista em história da
França do século XVIII, um historiador etnográfico, pesquisador de visões de
mundo pouco exploradas. Através de narrativas de fatos comuns ocorridos naquela
época de uma França do século XVIII que passava por um processo de
transformação social para o capitalismo como apresenta em seu texto: “Os trabalhadores se revoltam: O grande
massacre de gatos na Rua Saint-Séverin”. Essa obra foi traduzida por Sonia
Coutinho e publicada no Brasil em 1986. O texto é a narrativa de uma autobiografia
de Nicolas Contat[1], durante
seu estágio em uma gráfica de Paris no século XVIII, localizada na Rua
Saint-Séverin e outros dois aprendizes; Jerome - para Darnton: Jerome era uma
versão algo ficcionalizada do próprio Contat - e Léveillé. A narrativa teve
como pano de fundo os conflitos de classe de uma sociedade pré-industrial que
tinha na categoria dos gráficos a formação de uma oligarquia de mestres
comprovada com a ampliação de impressoras e a redução das oficinas. Essa
modernização elevava a força das gráficas com menos números de oficiais, isso exacerbava
as relações de conflitos entre artesões, aprendizes, assalariados entre si e
com os patrões.
Assim,
Contat fez seu aprendizado escreveu suas memórias em tempos difíceis para os
tipógrafos assalariados, quando os homens da oficina da Rua Saint-Séverin
estavam ameaçados de serem eliminados do nível superior do negócio e tragados
pelas camadas inferiores. (Darnton, 1896, p. 109)
Para
Dornton, os fatos que levaram os trabalhadores a promover o massacre dos gatos
tinham muito mais do que a simples aparência dos fatos, sua análise coloca o
leitor num aprofundamento das consciências de uma sociedade que trazia consigo
símbolos, ritos, crenças e superstições típicas de uma sociedade feudal. Esse período
de transição das relações de produção do feudalismo, que a cada dia ficava
ultrapassado, para relações de trabalho assalariado identificado na narrativa
de Contat que viveu aquele período e foi participante ativo no seio da
categoria dos gráficos formados por aprendizes, oficiais, assalariados e
mestres, demarca o contexto socioeconômico em que o fato se desenrolou.
Como
narra o texto, as condições de trabalho e moradia dos trabalhadores em gráficas
do século XVIII era bastante precária, desde as acomodações até alimentação
“servidas” a eles. O texto destaca bem ao referir-se o tratamento dispensado a
gata pertencente à mulher do patrão, la grise,
tida como um amuleto - superstição comum à burguesia da época - em comparação
aos seus operários “Em vez de jantar a mesa do patrão, tinham de comer os
restos de seu prato na cozinha.” (DARNTON, 1986), sem contar com o barulho de
uivados dos gatos que proliferavam pela gráfica e nas ruas próximas que
chegavam a impedir que os pudesse dormir. A situação chegou ao ponto que seu
companheiro de trabalho, Léveillé, escalasse o telhado onde os patrões dormiam
e passou a simular uivados durante várias noites para fazer provarem um pouco
do incômodo que os animais que eles tanto prezavam, em especial la grise, propiciava aos trabalhadores
que tinha que dormir em meio a eles. Os resultados de noites a fio ouvindo
uivados, os patrões deram a ordem para o extermínio dos felinos por acharem que
foram enfeitiçados. Apesar da ressalva de poupar a gata de estimação, feita
pela mulher do patrão, ela foi a primeira a ser alvejada pelos oficiais e
assalariados, e, exposta como troféu de caça e como uma resposta ao desprezo da
patroa com seus operários. Ao fim da caçada os operários promoveram um
verdadeiro “carnaval” e Léveillé o principal personagem que tinha um
reconhecido dom de imitações e mímicas, meios comuns para gozar da cara de quem
não se gostasse.
Mais
os relatos da história cultural francesa capitada por Darnton no relato feito
por Contat não se limitavam ao ocorrido com os gatos e a vida difícil de
aprendizes na gráfica de Jacques Vicent. A aprendizagem da profissão de
tipógrafo também trazia costumes próprios da profissão, era uma etapa na vida
de um jovem aprendiz que demonstravam fortes laços com o passado, tradições e
segredos guardados aos quais os aprendizes passavam a descobrir. Eram
submetidos pelos superiores a provações, e ritos para alcançar o status de “Monsieur”[2],
alcançado primeiro por Jerome “Tendo cumprido, na plenitude, um rito de
passagem, no sentido antropológico da expressão, ele se tornou um
Monsieur” (Danton, 1986, p. 120).
Para
drenar os sentimentos acumulados diante de toda a situação desumana de
maus-tratos e submissão que os tipógrafos tinham que aturar dos patrões havia
um período, que assim como o evento ocorrido com os gatos, esses trabalhadores
podiam expressar de forma descarada o que pensavam dos patrões e seu modo de
vida de aparências. O carnaval, onde
toda ordem era posta a baixo, tendo o gato os principais instrumentos
simbólicos para representar essas transgressões.
O carnaval era um período de critica, para os grupos
jovens, particularmente os aprendizes, que se organizavam em “abadias”,
dirigidas por um pretenso abade, ou um rei, e faziam charivaris ou passeatas burlescas, com música grosseira, cujo
objetivo era humilhar maridos enganados, maridos espancados pelas mulheres,
mulheres casadas com homens mais jovens ou qualquer um que personificasse uma
infração das normas tradicionais. Carnaval era a temporada da hilaridade, da
sexualidade, e os jovens se esbaldavam - um período em que a juventude testava
as fronteiras sociais, através de irrupções limitadas de desordem, antes de ser
outra vez assimilada pelo universo de ordem, submissão e seriedade da quaresma.
(DARNTON, 1986, p. 113)
Dornton
buscou reconstruir o cenário narrado por Nicolas Contat: Anecdotes typographiques ou l’on voit la
description de coutumes, moeurs et usages singuliers des compagnons imprimeurs, ed. Giles Barber (Oxford, 1980). O
manuscrito original está datado de 1762. Barber fornece uma descrição completa
dos antecedentes do livro e da carreira de Contat, em sua introdução. O relato
do massacre de gatos ocorre nas páginas, 48-56. Através dos papéis da Société
Typographique de Neuchatel (STN), que forneciam registros de contratações e
eram confrontados aos relatos feitos por Contat e os arquivos da vinculados à
categoria dos gráficos, um trabalho investigativo, pois o fato só fora relatado
apenas por Contat, restando saber em que contexto sociocultural o relato se
podia reconhecer como verdadeiro.
A
abordagem do texto “Os trabalhadores se
revoltam: O grande massacre de gatos na Rua Saint-Séverin” numa primeira
vista dá ao leitor de uma sociedade contemporânea uma certa repulsa ao ato dos
operários, pode parecer uma barbárie contra os gatos, mas Darnton e o objeto de
sua história é contextualizar qual era o pensamento e os ritos dos membros da
sociedade francesa da época, os episódios que remontam não apenas o massacre dos
animais como um ato isolado. O episódio da admissão de Jerome ao status
Monsieur, do comportamento animalesco dos trabalhadores nos períodos de folias
carnavalescas. Por trás de fatos comuns se podiam reconstruir posturas sócias mais
antigas que o período em que os fatos foram relatados por Contat. Nesse contexto o massacre dos gatos não estava
isolado em um ato de operários insatisfeitos apenas, mas representava uma
lembrança histórica do que o gato representava nos mitos e lendas do folclore
que ainda tinha força numa sociedade em transformação.
[1] Darnton pesquisou o relato de Nicolas Contat em Anecdotes
typographiques ou l’on voit la description de coutumes, moeurs et usages
singuliers des compagnons imprimeurs, publicado em 1980, pela editora Giles
Barber (Oxford, Inglaterra). Na nota 1 (do capítulo 2), na p. 345, Darnton
lembra que o manuscrito original está datado, segundo Barber, de 1762.
[2] O
texto não dá o último nome de Jerome, mas enfatiza a mudança de nome e a aquisição
do "Monsieur": "Só depois do fim da aprendizagem se é chamado de
Monsieur; esta qualidade pertence apenas aos assalariados e não aos
aprendizes" (pg. 41). No livro de salários da STN, os assalariados sempre
aparecem com seu "Monsieur", mesmo quando são chamados por apelidos,
como "Monsieur Bonemain".