quinta-feira, 7 de agosto de 2014

RESENHA DO TEXTO: “Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política”

Walter D. Mignolo é argentino de origem camponesa, professor de literatura e Antropologia e diretor do Centro de Estudos Globais e Humanidades da Universidade de Duke nos Estados Unidos.  Como pesquisador é reconhecido na academia latino-americana como um dos principais teóricos da corrente de pensamento pós-colonial. Junto com os pesquisadores Aníbal Quijano e Enrique Dussel, vem sendo reconhecido na academia por seu debate sobre modernidade/colonialidade. Dentre suas principais publicações estão: O lado mais obscuro do Renascimento, 2003; Desobediência Epistémica 2010[1]; Histórias Locais / Projetos Global: Colonialidade, Saberes Subalternos, e Pensamento de Fronteira, 2012; Aprender a desaprender: Reflexões descoloniais de Eurásia e Américas, 2012; A ideia de América Latina, 2012.
 Mignolo ao iniciar o texto “Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política” reforça a necessidade de uma desobediência teórica como o principal caminho para os pensadores pós-colonial/descolonial, essa defesa é destacada no texto de Mignolo com um trecho do artigo de Quijano: “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad” (1990, 1992) “Lejos de esto, es necesario desprenderse de las vinculaciones de la racionalidad-modernidad con la colonialidad, en primer término, y en definitiva con todo poder no constituido en la decision libre de gentes libres”. Tendo a construção epistêmica dos conceitos e categorias próprias do pensamento descolonial, da mesma forma sem abandonar as contribuições das críticas feitas ao pensamento colonial hegemônico produzido por pensadores europeus, segundo Mignolo (2010) “não será tomada como ‘deslegitimar as ideias críticas europeias ou as ideias pós-coloniais fundamentadas em Lacan, Foucault e Derrida’”.
 Segundo o autor a desobediência epistêmica não se trata de “politica de identidade” mas sim de “identidade em política”, para Mignolo é essencial diferenciar ambas as posições. Enquanto a politica de identidade reforça o pensamento colonial com sua determinação e divisão entre etnias, gênero, sexualidade etc., que é fruto dos conceitos construídos por correntes de pensamento que reforçam a dominação colonial nos colonizados. É, justamente na identidade em política que se assegura a opção descolonial, criando teorias políticas que confronte com qualquer outra forma de pensar que não seja o construído com bases conceituais/categoriais e o fazer descolonial dos próprios colonizados e nesse sentido a língua também cumpre esse papel descolonizador no arcabouço de determinação que são impostas pelo discurso imperial seja na economia, religião, etc.

Pretendo substituir a geo - e a política de Estado de conhecimento de seu fundamento na história imperial do Ocidente dos últimos cinco séculos, pela geo-política e a política de Estado de pessoas, línguas, religiões, conceitos políticos e econômicos, subjetividades, etc., que foram racializadas (ou seja, sua óbvia humanidade foi negada). Dessa maneira, por “Ocidente” eu não quero me referir à geografia por si só, mas à geopolítica do conhecimento. (MIGNOLO, 2010, p. 290)

Para Mignolo mesmo os críticos da racionalidade ocidental, como os citados por ele: Las Casas, Marx, Freud, Niezche etc., ambos estavam limitados à regra do jogo: “[...] mas crítica dentro das regras dos jogos impostos por razões imperiais nos seus fundamentos categoriais gregos e latinos.” (p. 290), é a partir dessa oposição as regras impostas que surge o pensamento descolonial, negando assim, o reconhecimento da razão ocidental de superior/inferior/raça etc., construídos para justificar a dominação colonial e a dominação imperial sobre outros povos, em sua particularidade, fora da Europa.
 Esse discurso de “superioridade racional” vem em segundo momento com o conceito de modernidade europeia, mascarando mais uma vez sua intenção de nova colonização. Para o autor o pós 2ª guerra mundial marca esse novo movimento, como uma tentativa de perpetuação da logica colonial, uma nova segregação entre “mundos” segundo seu nível de desenvolvimento que tinha o europeu como padrão, assim como ocorria nas ciências modernas. Mignolo destaca que essa novo discurso também servia para referenciar as importâncias das vidas humanas ao exemplificar que as perdas nas guerras no continente europeu tinha um prejuízo maior – segundo a concepção eurocêntrica – seus teóricos logo se levantaram para criticar o “barbarismo” ocorrido nessas guerras, enquanto as vidas dos nativos e escravizados mortos durante as resistências ao processo de colonização não eram dada tanta atenção por esses teóricos.
 A modernidade apesar de se “travestir” com o discurso de desenvolvimento mútuo mostra sua face de velho movimento colonial ao não mudar o modo de ver o outro – antes pela racialização, agora pelo víeis do desenvolvimento econômico ao classificar segundo o “grau de desenvolvimento” pregado por eles: primeiro e terceiro mundos. A opção descolonial se confronta diretamente com os projetos econômicos colonial/imperial, ora encabeçados por países europeus, ora fora dele, mas mantendo o projeto de globalização neoliberal que para Mignolo (2010) caminha para “desfetichização do poder político e em uma organização econômica que visa à reprodução da vida ao invés da reprodução da morte e visa à reciprocidade e à distribuição justa da riqueza entre muitos, e não à acumulação de riqueza entre poucos." Através de governos, organizações econômicas distintas, movimentos sociais etc., surgidos dessa identidade em política levam sua defesa de escolhas não-capitalista e do desenvolvimento dessas nações, visto pelo pensamento imperial que ainda procura se impor.
 Os apontamentos sobre identidade em política e desobediência epistêmica tratada por Mignolo ultrapassa uma mera definição do pensamento descolonial, uma busca dessa definição estaria limitada ao pensamento hegemônico de normas disciplinares do conhecimento ocidental, que tanto o autor e os pensadores descoloniais procuram se afastar. O reconhecimento do pensamento descolonial é mais do que o “ser” e o “estar”, uma pessoa pode assumir uma identidade em política e uma desobediência epistêmica descolonial sendo um branco europeu ou estando na Europa, na Ásia, África etc., da mesma forma que um nativo das Américas, um indígena, um mestiço etc. pode assumir o pensamento colonial. Essa consciência está justamente no reconhecimento nas diversidades de organizações, categorias e relações de poder.
 Para Mignolo há vários exemplos de que o pensamento descolonial vem construindo uma identidade em política ao conseguir espaços de discursos fora das regras do jogo capitalista, na seara econômica; epistemológica, na educação; e na política ao colocar no poder figuras que façam um discurso que apontem uma alternativa plural dentro do pensamento descolonial existente já nos processos de colonização. Essa desobediência interna é mais visível na economia com a manutenção de formas comunais de organização social, sistema comunitários que visam um modo de produção qualitativa em detrimento à proposta quantitativas da forma imperial que tentam “padronizar” em esfera global um único sistema possível.
 O principal objetivo do texto de Mignolo – como uma desobediência epistêmica – é negar qualquer tentativa de padronização das relações sociais e econômicas e subjetivas dos povos, sempre respeitando e garantindo sua independência social, epistemológica e de poder.  E, é nessa critica que questiona qualquer tentativa de adequar esses povos a modelos socioeconômicos defendidos por teorias como: o neoliberalismo que reforça o poder hegemônico do Capitalismo ou as do socialismo/comunismo que apesar de sua oposição frente ao capitalismo, Mignolo considera na essência os mesmos objetivos – padronização - às formas de organização social pelo planeta, ambas combatidas pelo corrente de pensamento descolonial do qual faz parte ele e outros pensadores contemporâneos.




[1] Esta monografia, publicado originalmente em Inglês como um longo artigo, foi então traduzido para o espanhol (versão atual). Ele também foi traduzido para o alemão, francês e sueco.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O homem quem é ele? Um percurso “cronológico” da antropologia

Na tentativa de responder a pergunta: “o homem quem é ele?” muitos filósofos, desde os gregos pré-socráticos buscaram uma categoria que pudesse responder essa questão. Platão apresenta o homem como essencialmente alma e sua principal questão é: sendo o homem essencialmente alma: alma espiritual, incorruptível e imortal como se libertar do corpo? Tanto para Aristóteles quanto para Plotino a discussão de corpo e alma é norteada pela importância ou autonomia, de um sobre o outro. Para os gregos as suas análises partiam de uma perspectiva cosmocêntrica, ou seja, qual sua origem e relação com os astros e fenômenos da natureza.
Vale ressaltar que mesmo entre os pensadores gregos, a busca do conhecimento sobre o homem, sob observações biológicas, físicas e astronômicas para alcançar a respostas sobre o Que é o homem? Na perspectiva cosmocêntrica, havia também outros que apontavam o meio – social – como um campo privilegiado para se conhecer, observando o próprio homem, segundo Cassirer (1972):
Em suas primeiras fases, a filosofia grega parece exclusivamente interessada pelo universo físico. A cosmologia predomina claramente sobre todos os outros ramos da investigação filosófica. Não obstante, o que caracteriza a profundidade e a amplitude do espírito grego é o fato de quase todo pensador grego representar, ao mesmo tempo, um novo tipo geral de pensamento. Além da filosofia física da Escola de Mileto, os pitagóricos descobriram uma filosofia, matemática, enquanto os pensadores ele áticos são os primeiros a conceber o ideal de uma filosofia lógica. Heráclito encontra-se nas fronteiras entre o pensamento cosmológico e o antropológico. Embora ainda fale como filósofo natural e pertença aos “antigos fisiologistas”, está convencido de que é impossível penetrar o segredo da natureza sem haver estudado o segredo do homem. Precisamos satisfazer a exigência da introspecção se quisermos aprender a realidade e compreender-lhe o significado. Por isso foi possível a Heráclito caracterizar toda sua filosofia em duas palavras “Procurei por mim mesmo”.  (CASSIRER, 1972, p. 19, grifo nosso).

Cassirer encontra em Sócrates uma nova postura na investigação, sem abandonar o conhecimento acumulado pelos seus antecessores, aponta que o conhecimento acerca do homem está além do conhecimento das coisas físicas e das substâncias, é do processo dialético do exercício da razão, do confronto entre as perguntas e respostas que se faz a si mesmo que se pode trilhar o caminho de conhecer o que é o homem, esse caminho está em meio a outros homens. Cassirer cita um trecho do dialogo de Sócrates e seu discípulo Fedro “[...] que sou um amante do conhecimento e os homens que habitam na cidade são meus mestres[...]” para demarcar um viés estritamente antropológico na busca de conhecer o que é o homem.
Para os filósofos medievais, se destacando entre eles Santo Agostinho e Santo Tomás, a perspectiva antropológica passa por uma visão teocêntrica, ou seja, se pode conhecer o homem a partir de sua origem e sua relação com Deus. Sua origem e seu “destino” dependem de sua proximidade com Deus e essa proximidade se baseia na busca pela salvação da alma, pois apenas uma alma pura tem a possibilidade de alcançá-lo. Nessa perspectiva o abandono da visão cosmocêntrica passa a uma visão teocêntrica para justificar a existência humana e sua “razão” de existir. A perspectiva teocêntrica, a dualidade entre corpo e a alma dificultava o conhecimento do homem e, por conseguinte, seu afastamento de Deus. No corpo residia toda possibilidade do pecado das sensações humanas e a alma necessitava manter-se pura para alcançar seu fim último, a salvação.
Na tradição cristã o percurso de entender essa dualidade entre corpo e alma tiveram duas perspectivas entre seus principais filósofos apesar de apresentar características em comum – alma e corpo – ambos enfocam a alma como o caminho comum para alcançar a essência do homem, segundo Mondin (1926):

Nas linhas fundamentais, de qualquer maneira, a antropologia de Agostinho se inspira em Platão: a mesma dicotomia entre a alma e corpo, a redução do homem essencialmente à alma, a completa autonomia do conhecimento intelectivo com respeito a qualquer contribuição do corpo. (MONDIN, 1926,  p. 11, grifo nosso).

Santo Tomás, elabora uma nova antropologia filosófica, que tem como pontos característicos os seguintes: o homem é composto essencialmente de alma e corpo; a alma não subjaz ao corpo[...] (MONDIN, 1926,  p. 11 e 12, grifo nosso).

É na modernidade onde as duas visões anteriores - cosmocêntrica, dos gregos; e teocêntrica dos autores cristãos - que perdem sua imposição perante as pesquisas críticas, tendo no homem o ponto de partida. Nessa perspectiva antropocêntrica é visto de várias formas, mas sob a inspiração na filosofia de Platão (uma ideia de bem e fim último), de cunho metafísico tendo como principais representantes Descartes, Spinoza, Pascal etc. Com Emmanuel Kant - autor da Critica da Razão Pura - essa antropologia metafísica tem um duro golpe, pois em Kant a alma humana não pode absorver um saber absoluto, para Kant o homem só pode conhecer aquilo do qual ele tem contato. Foi a partir dessa crítica de Kant à metafísica que surge uma nova investigação antropológica na modernidade, tomando novas perspectivas, uma investigação do homem em relação à ética, indivíduo, ser social, instintivo etc., grande parte de suas condições particulares.
Mas a antropologia não se contenta com o conhecimento do homem em suas particularidades, ela busca o conhecimento acerca do homem por completo e universal. Dessa forma poderíamos dizer que a antropologia contemporânea limita-se em responder a pergunta: “O homem quem ele é” dando sua resposta a partir de suas especificidades de abordagem, mas limitado em seu conhecimento do homem total.
Assim, cada corrente da antropologia filosófica moderna tenta apresentar em suas teses um homem de acordo com sua perspectiva Mondin (1926): relaciona algumas dessas que ele chama de “série de novas imagens do homem” que seria “homem econômico, Marx; homem instintivo, Freud; homem angustiado, Kierkegaard; homem utópico, Bloch; homem existente, Heidegger; etc.” Se para o filósofo Karl Marx o homem poderia ser “conhecido” a partir do econômico, ou seja, a partir dos modos de produção que se apresentaram ao longo da história da humanidade no processo dialético homem-trabalho-natureza. Para uma perspectiva ainda mais contemporânea com a apresentada por José Ortega y Gasset (1883-1955) o homem poderia ser desvendado através da técnica, o homem técnico, que tem por finalidade completar seu “programa de vida”[1].

Podemos observar que, se na visão cosmocêntrica e teocêntrica a dualidade estava entre a alma e corpo para se conhecer o homem, se alternando entre as teorias mais aceita para cada época, na modernidade as discussões antropológicas torna-se ainda mais complexas diante das inúmeras perspectivas que se caracterizam sobre os prismas a ser observado. Temos que reconhecer que diante das inúmeras perspectivas hoje, a certeza que temos é que a tarefa de conhecer o que é o homem se torna mais difícil, tornando esse homem um “enigma” cada vez mais longe de ser desvendado, mas por outro lado, mais instigante o seu estudo com o objetivo de identificá-lo e compreendê-lo. Nesse sentido, a filosofia antropológica cumpre uma tarefa essencial à humanidade.

[1] GASSET Y, Ortega. Meditação sobre a técnica. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1991.